segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Ação estatal e desenvolvimento capitalista no Brasil: desmistificando dicotomias

Desde meados dos anos 1970, com a reorganização produtiva do capitalismo global, que, dentre outras coisas, superou o fordismo como método predominante de organização da produção fabril, tornou-se bastante comum atribuir aos Estados nacionais a maior parte da responsabilidade pelos problemas sócio-econômicos pelos quais os países passavam, ou vieram a passar. Magistralmente cristalizada na afirmação atribuída ao presidente dos EUA Ronald Reagan de que o “Estado é o problema, não a solução”, a fórmula do Estado mínimo, esgrimida desde há muito pelos economistas neoclássicos, alcançou, desde então, o status de dogma contemporâneo. Posta em prática com intensidades bastante distintas nos diferentes países do globo, foi particularmente influente na América Latina, região que foi palco de uma das primeiras experiências de gestão econômica embasada quase que totalmente nesses pressupostos – atualmente conhecidos sob o rótulo de neoliberais – no Chile do ditador Augusto Pinochet (1973-1990).

A despeito de seu recente boom de popularidade, a idéia de que Estado e sociedade civil constituem pólos absolutamente opostos, no entanto, possui uma longa genealogia no pensamento social e filosófico ocidental. Thomas Hobbes, por exemplo, pode ser apontado como um dos principais propulsores dessa matriz de pensamento – que, em termos mais rigidamente teóricos, é qualificada como “jusnaturalista” – na medida em que, ainda no século XVII, enxergava a criação de um Estado forte, alheio às disputas sociais e dotado de uma racionalidade particular (a “razão de Estado”) como única saída para o impasse (leia-se guerra civil) causado pelas divergências religiosas entre católicos e protestantes ingleses, e europeus em geral. Não é, entretanto, o objetivo desse texto reconstituir toda essa linhagem jusnaturalista e, feita esta referência genérica a suas origens, partamos para um comentário mais amplo acerca de sua caracterização.

A crítica central que, a meu ver, deve ser feita a esta tradição de pensamento é a de reificação do Estado. Explico-me: apesar de ser um elemento constante na imensa maioria das sociedades, povos, civilizações, etc conhecidos, tanto no presente, quanto no passado, o Estado assumiu, em cada uma delas, as mais diversas formas. Ora, acredito que pouquíssimos discordariam da afirmação de que o Estado da Europa ocidental na Idade Média difere imensamente daquele erigido pelos fascistas italianos sob o comando de Benito Mussolini, por exemplo. Para além de seu reconhecimento, essas diferenças devem, caso desejemos construir algum tipo de conhecimento acerca das sociedades humanas, ser explicadas. E, para que esta hipotética explicação fizesse algum sentido, parecer-me-ia absolutamente crucial que evocássemos, ao menos, alguns dos aspectos estruturantes das sociedades em questão (medieval e fascista); do contrário, correríamos o risco de conceber a história como mera seqüência de acasos, em que elementos tão influentes como o Estado fundar-se-iam em um princípio de aleatoriedade, tese esta que poderia ser aceita, mas que inviabilizaria qualquer pretensão de compreensão da realidade social de qualquer momento histórico, uma vez que o aleatório é, por definição, indeterminado e, portanto, incompreensível.

Não sendo o Estado um ente gerado ao acaso, a compreensão das formas específicas que assumiu ao longo da História deve partir de sua conexão com as sociedades que engendraram cada uma dessas formas, o que é o mesmo que dizer, grosseiramente, que o Estado é sempre “produto” da sociedade em que surge. Logo, alguns dos agentes coletivos que compõem esta sociedade podem ser identificados como principais responsáveis pela construção e manutenção do aparato estatal, seja ele feudal, fascista ou liberal. Aqui, um rápido esclarecimento talvez seja necessário: apesar do que a ideologia liberal afirma há séculos acerca da igualdade entre os homens – igualdade esta que se constrói a partir da categoria jurídica de “cidadão” –, parto de um pressuposto diametralmente oposto, na medida em que a sociedade ocidental, desde pelo menos a Antigüidade, passando pelas Idades Média e Moderna, até o capitalismo contemporâneo, se estrutura sobre classes sociais, que dividem todos os indivíduos dessa sociedade em duas classes sociais fundamentais, a dos produtores e a dos apropriadores, ainda que estes dois grupos tenham importantes nuances e diferenciações internas. Ao falar de agentes coletivos, me refiro, então, ao conceito de classe.

Ao dizer que determinada classe social detém o controle do Estado, não pretendo afirmar que todos os indivíduos diretamente envolvidos com sua administração tenham consciência deste fato, e tampouco tenho a intenção de negar as diversas contradições que atravessam este Estado – assim como às mais diversas instituições sociais. Em termos teóricos, portanto, minha argumentação vai em sentido oposto ao do pensamento liberal, uma vez que pretendo reinserir o Estado e sua dinâmica própria no bojo da sociedade que o gerou, e não concebo-o como um ente externo, e potencialmente destrutivo, em relação a esta sociedade. Com isso, chego à minha proposição fundamental nesse texto, a de que a idéia de que o Estado pode erguer-se acima dos interesses dos indivíduos, ou das classes – como queriam Hobbes, Locke e os demais pensadores vinculados à tradição jusnaturalista, como o são os neoliberais – para funcionar como um árbitro das disputas é absurda. A não ser em situações muito especiais em que pode haver certo equilíbrio social, as quais não vou abordar neste texto, o Estado tende a funcionar como elemento de construção e fortalecimento do poder de determinada classe social.

Para ilustrar o que tentei demonstrar teoricamente, acredito que poucos países fornecem exemplos tão ricos em suas histórias como o Brasil. Se pensarmos, por exemplo, na etapa da industrialização que o país atravessou no período 1930-55, veremos de que maneira o Estado atuou fortemente no sentido de garantir a ascensão político-econômica da burguesia industrial urbana.

Até o início da década de 1930, o Brasil possuía uma clara e definida inserção na divisão internacional do trabalho: grosso modo, fornecia produtos primários a baixos preços para os países do centro do sistema capitalista e comprava produtos industrializados destes. Com o crash da bolsa de Nova Iorque em 1929, e a subseqüente crise econômica mundial, a posição ocupada pelo Brasil na DIT passou a ser cada vez mais fundamental, uma vez que as combalidas economias do centro do sistema necessitavam que o preço das matérias-primas e demais produtos primários se mantivessem em níveis baixos, a fim de viabilizar a continuidade de sua produção industrial. Ao contrário do desejado pelos países mais poderosos do bloco capitalista, o que o Brasil fez então? Aproveitou-se da fraqueza destes e impulsionou seu próprio processo de industrialização, diminuindo a importância relativa dos produtos primários em sua economia.

Certamente a correta compreensão dessa etapa da industrialização brasileira remete-nos a diversos fatores, como a crise do Liberalismo clássico, a eclosão da Segunda Guerra Mundial, entre muitos outros. Não obstante isto, não enxergar a importância do Estado nesse processo é deixar passar o óbvio, tantas foram as tarefas por ele desempenhadas nas duas décadas e meia seguintes: repressão à oposição interna (comunista, fundamentalmente, mas, também de outros matizes ideológicos), produção direta em importantes ramos da indústria (como a siderurgia, por exemplo), controle da política cambial para financiar a industrialização através dos recursos oriundos da agricultura, controle do preço da força de trabalho através do estabelecimento do salário mínimo em níveis de mera subsistência, mediação dos conflitos com os trabalhadores organizados, etc.

Se avançarmos em direção a outros momentos da história brasileira, veremos como se multiplicam os exemplos da ação estatal impulsionando o desenvolvimento capitalista brasileiro em perfeita sintonia com este, e não o entravando, como afirmam os liberais de diversas espécies. Na reestruturação do modelo iniciado em 1930 a que acabamos de nos referir, cujo marco é a presidência de Juscelino Kubitschek (1955-1961), vemos novamente a importância do Estado, reconhecida pela própria ideologia da época na fórmula do tripé: capital estatal – capital estrangeiro – capital privado nacional.

Outro interessante exemplo pode ser encontrado na política econômica da ditadura civil-militar (1964-1985). Com efeito, nessa área uma de suas mais duradouras realizações foi a extinção da estabilidade (um direito trabalhista fundamental) e sua substituição pelo FGTS. Nas últimas décadas, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço converteu-se numa das mais eficazes formas de financiamento do capitalismo nacional justamente por aqueles que dele não se beneficiam, os trabalhadores. Somente neste ano de 2008, o governo federal liberou parcelas do FGTS para capitalização da Petrobras (para a qual foram disponibilizados cerca de 75 bilhões de reais do Fundo) e financiamento do setor de construção civil (cerca de três bilhões de reais investidos). Além de tratar-se de dinheiro dos trabalhadores sendo controlado pelo Estado e empregado para o financiamento do capital nacional, o exemplo do FGTS nos permite observar com grande clareza a diferença entre o tratamento que o Estado dispensa aos trabalhadores e aos capitalistas. Com efeito, não existe nenhuma compulsão para que as empresas entreguem parte de seus rendimentos ao Estado para que este guarde-os para o caso de falência, ao passo que os trabalhadores vêem parte de seus vencimentos serem direcionados ao Estado e só podem retirá-la quando desempregados.

Também os mecanismos de renúncia fiscal para financiamento cultural – largamente empregados pelos governos federais desde o fim da ditadura – nos permitam algumas observações profícuas, os quais beneficiam duplamente as empresas investidoras: escolhem em que “produtos culturais” querem investir (ou seja, aos quais querem associar sua imagem) seus impostos, além de aliviarem o orçamento da área de marketing, liberando recursos para serem reinvestidos na produção ou somados aos lucros. Trata-se, portanto, de um caso em que o Estado abre mão da prerrogativa de empregar os recursos a que tem direito, criando uma clara assimetria, na medida em que nem todos podemos dispor de nossos impostos dessa forma, apenas as empresas.

Um último caso que quero mencionar é o das políticas assistencialistas levadas a cabo pelo governo Lula, em especial o bolsa família. Este exemplo me parece particularmente interessante por estar no centro dos debates em torno da administração federal petista, bem como por todas as contradições que evidencia. Ao pagar bolsas e auxílios, o Estado toma para si, ao menos em parte, a responsabilidade de garantir a reprodução da força de trabalho, o que tem, ao menos, três óbvias conseqüências: primeiro, no plano ideológico conecta o trabalhador ao Estado, fazendo-o dele dependente e, portanto, contribuindo para diminuir a tensão das relações capital-trabalho; segundo, socializa despesas que deveriam ficar a cargo dos capitalistas individuais: ora, sendo os auxílios pagos pelo Estado, eles provém de impostos pagos por toda a sociedade – inclusive, de outros trabalhadores –, e não apenas do bolso dos capitalistas; terceiro, em ampla conexão com o ponto anterior, desobrigam os empregadores de arcarem com a totalidade dos custos de reprodução da força de trabalho, podendo pagar salários abaixo do mínimo para a subsistência (o que é reconhecido pelo próprio governo, que só aceita como beneficiários famílias com renda mensal per capita de, no máximo, R$ 120,00); quarto, e por último, contribui para manter num patamar significativo o montante de trabalhadores no exército industrial de reserva, possibilitando o rebaixamento continuado dos salários.

Mas, como nada é isento de contradições, esses mesmos auxílios têm o mérito de direcionar para as parcelas mais necessitadas recursos provenientes de toda a sociedade. Enfim, ainda é melhor investir nisso do que em pagamento das dívidas interna e externa.

Espero que estes variados exemplos tenham contribuído para a compreensão de meu argumento fundamental, isto é, que o Estado, seja qual for sua forma, encontra-se profundamente enraizado na sociedade em que se origina, favorecendo, apesar das eventuais disputas e contradições, as classes sociais dominantes. Espero, também, que o caso brasileiro tenha sido suficientemente bem explicado para que não restem dúvidas acerca do caráter falacioso das proposições liberais, de fundo jusnaturalista, de que o Estado tende a entravar o desenvolvimento do capitalismo. Ao contrário, arrisco-me a dizer que se não fosse pela ação estatal, o capitalismo brasileiro poderia ainda ocupar posição bem mais subordinada do que a que atualmente lhe cabe no âmbito do sistema econômico mundial.

Reconhecer a vinculação do Estado a determinados interesses sociais não implica, no entanto, em negar a metamorfose de suas funções específicas nas últimas décadas. Se o Estado abandonou boa parte de suas posições como produtor econômico direto encastelando-se, por exemplo, em agências reguladoras, cabe-nos estudar essas transformações, buscando, sempre, identificar que interesses são beneficiados e através de quais mecanismos, sem cairmos na mistificação ideológica liberal que tenta pintar o Estado como ente alheio às disputas sociais e despegado de interesses e grupos específicos.

Por fim, considero importante perceber que a crítica teórica da separação de Estado e sociedade civil traz conseqüências importantes também no plano da ação política. Estando enraizado na sociedade que o circunda, o Estado não pode ser, isoladamente, a ferramenta absolutamente emancipadora que alguns setores da esquerda nacionalista desejariam. Por outro lado, dificilmente seria razoável para qualquer projeto de transformação social abdicar de tamanho poder de intervenção social concentrado, conforme apregoa certa esquerda pós-moderna. A transformação de qualquer situação histórica concreta passa, então, pela utilização tática – e não estratégica – do aparato estatal como elemento intensificador de certas contradições inerentes ao desenvolvimento capitalista e, simultaneamente, como instrumento de abrandamento da exploração a que está submetida a classe produtora. Mas passa, igualmente, pela ação articulada por fora do Estado, capaz de criar instituições e práticas que superem verdadeiramente aquelas vinculadas ao capitalismo, como o próprio Estado.
Marco M. Pestana

3 comentários:

Anônimo disse...

Amor, você bateu em todo mundo, hein?! Mas as porradas foram bem distribuídas. Hehehehe!
Como eu disse no orkut, a influência da Sonia Mendonça é nítida!

Já é um começo pra sua monografia, viu?

Unknown disse...

Gostei muito da premissa central do texto, de como ela é desenvolvida em diversos pontos ao longo do texto. Entretanto, tenho diversas críticas a vários parágrafos do texto, mas pela extensão das críticas e do texto, seria melhor fazê-las em outra ocasião que não por meio de comentário aqui. Se quiser, discutiremos. Você vai usar esse texto pra alguma coisa?

Unknown disse...

puxA, viram como eu gosto da palavra texto?