sexta-feira, 21 de março de 2008

A JUVENTUDE NA TELA

A complexidade das relações entre arte e realidade social jamais deixou se ser ponto de atenção e discussão para os estudiosos mais atentos das manifestações culturais em diversos tempos e espaços. Questões como a influência – ou a determinação – do contexto sobre a obra, intencionalidade ou não do discurso veiculado, o diálogo com a produção artística precedente, entre muitas outras, foram, e são, tema de acalorados debates acadêmicos e políticos. Pessoalmente, me alinho àqueles que crêem não apenas ser impossível a compreensão de qualquer obra de arte ou forma de expressão cultural fora de sua conexão com o mundo no qual é gerada, como também que todo tipo de discurso (cinematográfico, literário, teatral, etc) traz consigo – implícita ou explicitamente, consciente ou inconscientemente – uma visão de mundo, ou seja, concepções acerca da maneira como a sociedade efetivamente se estrutura e funciona.
É, portanto, com base nesses dois pressupostos acima explicitados que pretendo aqui analisar dois filmes que estiveram em cartaz nos cinemas do Rio de Janeiro entre maio de 2007 e fevereiro de 2008, em busca da compreensão dos olhares que seus respectivos diretores lançam sobre um tema em comum, a juventude, os quais exemplificam, creio eu, as duas macro-visões atualmente dominantes em relação ao tema em questão.
O primeiro filme a ser abordado é Juno, produção de 2007, que estreou por aqui em 22 de fevereiro de 2008. Típico filme indie estadunidense – musiquinhas bacanas (incluindo uma brasileira), história centrada numa personagem desajustada, uso de animação na abertura –, em Juno, Jason Reitman, seu diretor, nos conta a história de uma jovem de 16 anos, a Juno do título, que tem uma gravidez indesejada.
É na resolução do que fazer com o inesperado bebê que transparece uma Juno extremamente madura e confiante em suas escolhas, a qual contrasta fortemente com os demais jovens apresentados pelo filme: a abobalhado Paulie Bleeker, o pai da criança, e Leah, a amiga patricinha de Juno. Após um rápido flerte com a idéia de abortar, a personagem principal acaba se decidindo por dar o bebê para adoção, sem, ao menos, consultar seu pai, sua madrasta e, mesmo, Paulie. Efetivamente, Juno não dialoga propriamente com as pessoas próximas de si, apenas comunica-as de suas decisões.
Impressionando pela facilidade com que faz suas escolhas e suporta suas conseqüências; em suma, pela posição “adulta” que tem durante quase todo o tempo, Juno exemplifica, portanto, aquilo que acredito ser a primeira das duas chaves de interpretação da juventude já referidas, aquela que enxerga apenas algumas personagens excepcionais num grande oceano de mediocridade.
A segunda dessas chaves interpretativas a que me refiro pode muito bem ser exemplificada pelo filme Alpha Dog, dirigido por Nicky Cassavetes, que chegou ao Brasil em 18 de maio de 2007. Neste caso, a trama também se desenvolve em torno do processo de resolução de uma complicada questão. Um grupo de traficantes de drogas oriundos das classes média e alta nos seus 20 e poucos anos acaba por seqüestrar o irmão de um de seus clientes, com eles em débito. Com a polícia e o tal devedor em seu encalço, o grupo deve optar entre devolver o garoto e correr o risco de ser por ele reconhecido posteriormente, ou simplesmente matá-lo.
Durante o desenrolar dos acontecimentos, no entanto, tomamos contato com o estilo de vida desses jovens seqüestradores. Trata-se de uma contínua festa, regada a bebidas e drogas, sem nenhuma conexão com o mundo exterior ao do grupo, onde abundam a inconseqüência e o hedonismo, os quais só são postos de lado com a perspectiva de cometer um assassinato. Ao contrário do que ocorre em Juno, os jovens representados apresentam dúvidas, tanto interiores, quanto em suas conversas uns com os outros, as quais produzem choques entre eles.
Ainda que o filme supere, como tentei demonstrar, alguma das críticas que erigi a Juno, ao retratar jovens em relação uns com os outros – ainda que, muitas vezes, de maneira bastante conturbada – e em conflito com suas escolhas, peca pelo extremo oposto ao evidenciar uma recusa a se adentrar o mundo “adulto” e assumir as responsabilidades dele advindas. No fim, a opção por se matar o garoto seqüestrado dá o último retoque no quadro da juventude perdida, em que nem mesmo alguns se destacam.
A razão da escolha desses dois filmes para a análise aqui elaborada deve, a esta altura, já estar bastante evidente. Com efeito, creio que ambas as vertentes examinadas acabam por veicular um olhar extremamente pessimista sobre a juventude do início do século XXI, a qual deve ser combatida (lembremo-nos que não faz tanto tempo assim a juventude era tida como a portadora das soluções para os males sociais, como bem exemplificam os anos 60 do século passado). Mais concretamente, acredito que essas duas abordagens negligenciam dois aspectos centrais na vivência do período da vida a que me refiro: perde-se, de um lado, a idéia de transição entre duas fases (a infância e a idade adulta); e, de outro, a idéia de ação coletiva/troca envolvendo sujeitos distintos entre si com fins de crescimento individual e coletivo.
Com o primeiro desses dois pontos o que quero dizer é que se a adolescência e o início da etapa adulta da vida foram vistas como mera transição – com grandes prejuízos para a compreensão delas mesmas em suas especificidades –, o simples apagamento desse doloroso processo não torna seu entendimento mais acurado, apenas opta por optar pelo alargamento de qualquer das fases nos extremos do caminho: ou somos adultos em miniatura, ou crianças que se recusam a crescer. Com o segundo dos pontos elencados acima, me reporto ao impacto benéfico que o contato com múltiplas pessoas e suas respectivas escolhas de vida pode ter numa fase em que, em certa medida, ainda estamos tateando em busca de nós mesmos, mas somos obrigados a fazer uma série de escolhas. Ora, se nos fechamos em nós mesmos ou optamos por coletivamente reagir de maneira unicamente negativa ao mundo que nos cerca, não aproveitamos as experiências únicas que a juventude nos proporciona.
Por fim, cabe mencionar que se tentei, de alguma maneira, esboçar um panorama das visões acerca da juventude atualmente mais difundidas, bem como algumas críticas a elas, não me refiro à juventude como algo natural, com alguma ligação ao nosso desenvolvimento biológico. E, num país como o Brasil, no qual muitos não tem condições, tanto materiais, quanto afetivas, nem de serem crianças, falar da juventude como algo abstrato pairando nos caminhos de nós todos não seria mais do que uma brincadeira de mau gosto. Deixo, portanto, claro, que entendo a juventude nos termos em que me referi como um construto social, próprio das classes médias e altas da sociedade, como a própria análise das personagens dos filmes em questão deve evidenciar.

Marco M. Pestana

sexta-feira, 14 de março de 2008

Solidão hospitalizada

Estudando em um hospital universitário, público, acaba- se vendo e ouvindo muitas histórias, tristes e alegres. Algumas sempre chamam a atenção, seja porque simplesmente inusitadas ou deprimentes ou engraçadas. Entretanto, as que realmente mexem com cada um são as que trazem à tona nossos próprios medos, lembram- nos de nossas experiências ou simplesmente, por motivos muitas vezes desconhecidos, fazem com que nos imaginemos do outro lado, doentes e sofrendo, pois, por mais que não queiramos ser, somos iguaizinhos aos pacientes.
Especialmente no HU, onde estudo, há muitos doentes muito graves, terminais, sendo a morte um fato constante no cotidiano. A vida passa a ser uma questão de sobrevida, ou seja, de adiamento da morte. O cuidado é sempre máximo (ou devia ser) para que o prolongamento da vida não seja um prolongamento do sofrimento, do desgaste. Muitos acham que objetivo da medicina deve ser salvar vidas, prolongá-la ao máximo, defendê-la. Outros, acham que não, que o verdadeiro objetivo é aliviar o sofrimento, promover o bem-estar, proporcionar vida sim, mas com um mínimo de qualidade, para que cada um a desfrute à sua maneira. Talvez realmente haja vida que não valha a pena ser vivida, talvez por nem ser vida direito.
Voltando à questão de sobrevida, gostaria de esmiuçá-la um pouco mais. Quando nos defrontamos com a mortalidade do ser humano, com a nossa própria, percebemos que a definição de cura e principalmente a sensação de “perigo eliminado”, de trabalho terminado é muito enganosa. O mundo é muito dinâmico, a saúde não é diferente. Cem por cento dos pacientes morrem, no final das contas. O que se faz é prolongar. Acaba- se com o câncer, morre- se do coração. Faz- se pontes de safena, salva- se o coração, morre -se de infecção. Salva- se o cérebro, na semana seguinte morre- se com um tiro, com um cofre na cabeça ou o que for. Num episódio de câncer de uma pessoa conhecida, próxima, lembrei-me de uma frase de Drauzio Varella, que dizia mais ou menos o seguinte: já vi muitos pacientes cujo prognóstico sombrio foi dado pelos médicos de pouco tempo de vida, alguns anos no máximo, que acabaram por enterrar seus cônjuges e até mesmo seus médicos.
Outra questão que me deixou muito reflexivo foi a questão do abandono, da solidão, o que aparece muito no hospital. As pessoas ficam mais velhas, perdem os pais, entes próximos, ficam doentes e acabam largados em leitos de hospital, abandonados. Não sei se é uma questão só minha, mas o elemento mais deprimente de internados no hospital é quando eles não têm nenhum visitante, acompanhante, ninguém aparece para vê-los. A tristeza de ver uma pessoa muito mal ou mesmo no fim da vida, só, combina-se à tristeza da própria pessoa. A diferença é nítida entre pacientes que têm acompanhantes e os que não têm. Não sei, será que fica uma impressão de que já passou a sua vida inteira e não “marcou” ninguém o suficiente para que gostasse dele e viesse vê- lo nesse momento, fazer um pouquinho de companhia? É claro que há exceções, casos em que, realmente, praticamente TODOS os conhecidos já faleceram.
Recentemente, acompanhei por mais de um mês um paciente internado, parkinsoniano que havia fraturado o fêmur, que já estava internado há mais de um mês quando comecei a acompanhá-lo. Teve duas infecções durante a internação, estava desnutrido e já há algum tempo não conseguia mais deambular e mal conseguia mexer as pernas. Antes de ser internado, já quase não saía de casa e estava com muita dificuldade de realizar atividades cotidianas como cozinhar, limpar a casa e até mesmo comer (a rigidez e o tremor atrapalhavam-no muito). Além de examiná-lo, conversava com ele e descobri que era um fanático por futebol, como eu, que era vascaíno, mas que achava que o Fluminense tinha um ótimo time. Simpatizei muito com ele. Entretanto, já começava a apresentar déficits cognitivos, da memória e às vezes alucinava. Ele tinha família, uma filha, três irmãs, sobrinha. Sua esposa tinha falecido há pouco mais de 5 anos. Vi somente uma vez um membro da sua família, sua sobrinha que veio saber de seu tio, que já estava de alta. Conversei com ela, junto com os médicos residentes da enfermaria de Neurologia, todos já meio chateados com a família desse paciente, que não o levava embora e o fazia ocupar o leito que teria muito mais serventia para outro paciente. Outra coisa, inclusive dita à sobrinha, foi que se o paciente ficasse internado mais tempo, ele iria infectar novamente e iria falecer. Seria só uma questão de tempo. Infecção hospitalar é algo muito sério. Afinal de contas também, hospital não é asilo. Todo o descontentamento com a família foi se desfazendo e sobreveio um sentimento de culpa pela incompreensão da situação de muitas famílias de brasileiros. A sobrinha depois de nos explicar sua situação, chorando, foi conversar com o serviço social. Explicou que não tinha condições de cuidar dele, uma vez que morava com a mãe e ambas trabalhavam o dia inteiro, ganhando cerca de 2 salários mínimos, sendo que ela tinha uma filha pequena para cuidar. Queriam auxílio, declarações para dar entrada de pensão no INSS, para com ela pagar alguém para cuidar dele. Explicaram que esse processo do INSS demora bastante, que não seria bom que ele ficasse internado tanto tempo (não seria bom no sentido de que provavelmente ele morreria). Isso foi há 20 dias, desde então, não houve grandes mudanças na situação. Quanto às outras duas irmãs, uma era aleijada e a outra também tinha Parkinson, sendo cuidada pelo marido. Quanto à filha, ninguém sabia. Nunca teve um bom relacionamento com o pai, parece. Como eu queria que na verdade a família fosse um bando de canalhas megeros... Poderia usar essa situação aqui pra falar da necessidade de boas casas de assistência e asilos estatais, públicos e gratuitos, mas não quero me prolongar muito. A questão é, ele pode não morrer em breve. Todavia, o mais triste dessa história toda é que, semestre passado, vi um caso de abandono semelhante, um andar abaixo. Um paciente internado para fazer radio/quimioterapia por um câncer de língua que teve um AVC durante a internação. Ficou cerca de 4 meses de alta, esperando alguém da família ou conhecido vir buscá-lo. Ninguém foi, morreu de infecção.
Termino o texto com uma cena bonita, mostrando que ainda há esperança para a humanidade. Quando esse paciente com Parkinson se recusava a comer, o paciente ao lado convenceu-o e lhe deu café da manhã. Completamente desconhecidos eram até então. Não é só. Esse paciente fraterno teve alta, entrou outro. Entrei na enfermaria outro dia e vi esse novo paciente oferecendo-se para ajudar com a alimentação do parkinsoniano. No mesmo dia, um quarto paciente, que estivera internado na mesma enfermaria, voltara para visitá-lo. Isso é que é solidariedade, mesmo quando acha- se que não há muito a oferecer!
Alexandre

terça-feira, 4 de março de 2008

"Voto Consciente"

Nas últimas eleições municipais, em 2004, eu fui às urnas pela primeira vez. Ainda lembro da sensação de cumprir um dever cívico. Durante anos, eu discuti sobre política, falei do que sabia e do que não sabia, profetizei sobre o país, defendi meu partido e critiquei meus colegas comunistas. Finalmente, tinha a chance de votar. Não me interessava se naquele domingo outras tantas pessoas fariam o mesmo. Nem pensei sobre o fato de minha ação ter, numericamente, uma importância reduzida. Eu ia mudar o mundo!
No período de campanha eleitoral eu estudei muito. A eleição se tornou minha matéria predileta. A Matemática dos votos, a História dos candidatos e a Geografia dos partidos ganharam as minhas tardes. Nunca li tantos jornais! Minha mesada tinha que ser dividida entre a merenda do recreio, o cinema dos fins de semana e as minhas fontes principais de informação. Compareci a inúmeros debates e convenções. Um dia fui até o Méier só para poder conversar com um sujeito que pleiteava o cargo de Vereador da minha cidade.
Após este trabalho árduo, me convenci, ou me convenceram, de que o melhor candidato era o José das Couves. Suas idéias eram liberais, ele acreditava nas privatizações e faria de tudo para evitar uma nova onda inflacionária. Além disso, em minha pesquisa, eu descobri que ele era o verdadeiro “paladino da ética”. Em seu período na administração pública, ele fora diretor de diversas empresas e sempre puniu com rigor os corruptos que encontrou. Tinha mais, anos antes esse candidato lançara um livro com diretrizes para o país. Eu votaria em um vereador que tinha um projeto nacional!
Logicamente, por acreditar nas idéias de José das Couves e em seu partido, eu me “alistei” para a batalha. Munido de panfletos e bandeiras, saí pelas ruas do Rio disposto a convencer o povo a apoiar meu candidato. No entanto, em uma dessas conversas (que tinham esse nome só porque catequese é muito feio) eu me irritei com o Seu Jair, meu porteiro. A situação foi rápida, eu quis evitar um bate-boca. Chegando em casa, eu perguntei se ele já tinha um candidato para vereador. A resposta veio na lata: “Claro! Vou votar no Ricardinho da Mangueira.”. Impressionado com a convicção política do homem que passava o dia inteiro abrindo portas, que, por ser semi-analfabeto, não lia jornais e que, ao invés de ver o noticiário na TV, ao chegar em casa preferia dormir cedo, eu perguntei o que o levava a votar no tal do Ricardinho. Foi aí que me irritei: “Pô garoto, o Ricardinho é gente boa! Prometeu até um emprego pra minha mulher.”.
Abri a porta do meu apartamento desolado. Eu passara os últimos meses estudando, pesquisando e lutando por um país mais justo. Enquanto isso, meu porteiro nem ligava para as eleições e ia votar em um candidato malandro só por que este prometera um emprego pra mulher dele. Porém, como eu sou um cara equilibrado, eu resolvi pensar mais sobre o assunto. Veja bem, eu sabia muito sobre diversos candidatos. Havia gasto meu tempo e dinheiro pra descobrir qual seria a melhor opção para o Rio, para o Brasil e para o mundo. Eu tinha um voto consciente! O meu porteiro representava o atraso, era o tipo de pessoa que atravancava o progresso brasileiro. Tudo bem, o voto dele poderia ter o mesmo valor quantitativo que o meu, mas, como eu disse, o meu era consciente.
Agora, já no final de 2005, eu resolvi olhar para trás e fazer um balanço geral do panorama político. O José das Couves e o Ricardinho da Mangueira conseguiram se eleger e passaram os últimos doze meses definindo as políticas públicas de nossa cidade. Quer dizer, enquanto o meu candidato formulou 57 propostas de melhorias, tomou a frente na Comissão de Ética da Assembléia e possibilitou a liberação de mais verba para a educação e para a saúde, o Ricardinho conseguiu o emprego prometido para a mulher do meu porteiro e mais uma meia dúzia do seu curral eleitoral. Isso prova que eu estava certo.
Ontem, ao chegar do colégio, fui conversar mais uma vez com o Seu Jair. Falei sobre tudo o que eu tinha pensado, tentei fazer meu papel de educar esse povo e mostrei para ele que o meu voto tinha ajudado a colocar um excelente político no poder e que o dele não serviu de muita coisa para a sociedade. Terminei meu discurso com um imponente, “Seu Jair, é importante que você tenha um voto consciente!” Após pensar durante uns segundos, o Seu Jair respondeu: “É verdade rapaz, mas esse ano o Papai Noel vai visitar meus filhos pela primeira vez.”

Por Daniel Edler