sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Visão da redenção ou fragmento do nada

O crepitar da madeira sendo vagarosa, mas inexoravelmente consumida pelas chamas na lareira atravessou o silêncio que se instalara no chalé e retirou-me do estado de letargia no qual mergulhara há alguns instantes. Os cansaços físico, psicológico, espiritual e intelectual se sobrepunham de modo a conformar uma teia que me aprisionava tornando cada movimento e cada reflexão, por mais banais que pudessem ser, esforços dignos de um Hércules.
Desperto de meu transe, afastei-me da lareira onde acabara de despejar uma nova carga de gravetos, caminhei até o velho sofá à frente do fogo e deixei meu corpo desabar pesadamente. Lentamente, os últimos instantes voltavam à minha memória. Seguiram-se os últimos dias, meses, anos e, num piscar de olhos, já me via novamente criança, brincando como se a existência não me impusesse nenhum fardo.
A imagem do caderno coberto de caóticas anotações – em verdade, creio que a quantidade de rabiscos superava a de anotações – arremessou-me de volta à realidade, na qual aterrissei de maneira pouco ou nada sutil. Apanhei o caderno de cima da rústica mesa de madeira colocada entre a lareira e o sofá e, partindo do princípio, reli as notas que dispusera ao longo das páginas naqueles (quantos?) dias de reclusão. Conforme o esperado, a visita à materialização de minha tormenta mental não me trouxe conforto, nem apontou caminhos. Aquelas mal-traçadas linhas, rabiscos, desenhos incompreensíveis compunham, sem a menor dúvida, o mais fiel retrato de meu estado àquela altura. Fotografia nenhuma poderia ser mais exata.
Como ainda me sentisse levemente anestesiado, imaginei que um bocado de café pudesse contribuir para a completa reativação de minhas faculdades. Caminhei até a cozinha, contígua à sala, e servi uma grande caneca daquele precioso elixir negro revitalizante. Enquanto sorvia o café, podia observar através da janela meu carro estacionado no gramado ao lado do chalé. Aquele automóvel era a única coisa que ainda me mantinha conectado ao meu antigo mundo, para o qual não sabia quando retornaria, se é que o faria. Certamente algumas trivialidades, como o fato de meu dinheiro estar terminando, me conduziriam mais cedo do que eu gostaria de volta para a civilização.
O torpor já começava a se dissipar e eu já conseguia escutar o tranqüilo correr do rio atrás da fina parede de madeira da cozinha, quando depositei a caneca no fundo da pia e decidi retornar à sala. No momento em que transpus o portal e alcancei o outro aposento, uma pequena luminosidade do lado de fora do chalé imediatamente capturou minha atenção. Percebi que de modo não-linear o foco de luz se aproximava da porta e passei a caminhar em sua direção. Seria a redentora luz que os poetas – e os otimistas – insistem em ver no fim do mais escuro dos túneis? Ou – meu estado de espírito ainda não se alterara, apesar de estar ligeiramente revigorado fisicamente – o pequeno lampião que ilumina o caminho da Morte – essa misteriosa senhora - em direção àqueles que ela deseja encontrar?
Quando finalmente alcancei a porta, apressei-me a abri-la e pus-me à distância de um beijo da entidade luminosa. Antes que pudesse constatar se tratar de um enxame de vaga-lumes, fui tocado pelos gélidos dedos do frio serrano e, por um instante, hesitei entre retornar para dentro do chalé ou permanecer do lado de fora. Após a breve vacilação, tentei caminhando alcançar os vaga-lumes. A baixa temperatura e a relativa inatividade física, travando cada músculo de meu corpo, me impediram de acompanhá-los por mais do que alguns segundos e pus-me a observá-los em seu despretensioso vôo. Bailavam no ar sem se importar comigo ou com qualquer outra coisa à sua volta. Faziam apenas o que a natureza esperava que eles fizessem. Perguntei-me, então, o que a natureza esperava que eu fizesse.
Atingida por um inesperado golpe de vento, a porta, poucos metros atrás de mim, bateu violentamente.
Marco M. Pestana

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

O pipoqueiro na guilhotina

Conceitos moribundos rondam nossas conversas. Suas vidas úteis já acabaram, mas continuam suas frágeis existências, pois a maior parte das pessoas não compreendem que estão obsoletos. Pobres velhinhos que não vêem a hora de descansar em paz, porém, são importunados por intelectuais saudosistas, carentes da época em que esses termos ainda possuíam um significado compreensível.
Os conceitos políticos são os mais violentados. Não é possível que, passados mais de duzentos anos da revolução francesa, ainda se usem termos empregados para classificar grupos políticos a partir do lugar em que se sentavam nas assembléias. Ou então, que se insista em utilizar expressões que faziam sentido na Europa de Marx, mas nada dizem em um mundo globalizado e cada vez mais dinâmico.
Como falar em burguesia, por exemplo? Ora, se um indivíduo é dono de sua carrocinha de pipoca, é um burguês. Já o especulador da bolsa, apesar de ter uma influência muito maior na penúria de sociedades a léguas de distância de Wall Street, ganha milhões sem possuir meio de produção algum e, por isso, não é burguês. Opiniões políticas à parte, não acredito que Marx incitaria os proletários a lutar contra o pipoqueiro.
Outro exemplo, o qual já mencionei de passagem, é a definição de esquerda e direita. Esses conceitos acabaram por, com o tempo, adquirir dois valores diferentes, que na época fazia sentido andarem juntos. Diz-se de esquerda a pessoa cuja diretriz política é mais voltada para o aspecto social e/ou faz oposição ao poder vigente. Isso, porque os jacobinos, além de opositores do primeiro governo da revolução, eram os maiores defensores das mudanças de cunho social. Conseqüentemente, de direita seria a pessoa com interesses numa política mais preocupada com a economia e que está vinculada ao governo do momento. Esse emprego se dá graças ao posicionamento dos girondinos. Duvido que Fidel Castro se identifique com Robespierre.
Com o tempo, os conceitos se tornam dúbios e precisam ser repensados. Senão, corremos o risco de tentar maquiá-los, dando uma aparência nova a uma expressão que, mesmo parcialmente remodelada, já se encontra vazia de sentido. Como aceitar termos como socialismo de mercado? Os países que adotam este sistema pessimamente batizado podem até não gostar de serem associados aos capitalistas, mas comunistas não são. Se a China recusa a idéia de democracia por considerá-la uma invenção ocidental, deveria ser coerente e inventar um novo nome para o modelo político que estão criando. A não ser que o termo socialismo tenha sido expropriado pela revolução e se tornado oriental da noite para o dia.
Ao se utilizar conceitos antigos, existe a garantia da adesão à idéia das pessoas já familiarizadas com certas palavras. Ninguém quer correr o risco de perder adeptos tão fiéis. Renomear o que está a nossa volta, quando envolve ideologia, requer uma minuciosa explicação àqueles que se sentem órfãos de nomenclaturas.
O mundo muda, as políticas mudam. Não faz sentido que os mesmos nomes signifiquem situações tão diferentes. Precisamos nos desapegar dos conceitos caducos. Ou então, guilhotinar o pipoqueiro.

Gabriela Roméro

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

O continente do futuro (ainda no passado)

O olhar de um universitário latino-americano acerca da região em que vive e constrói sua identidade pode, e é provável que seja, amplamente distorcido. Inserido nas complexas relações sociais de interação/identificação existentes, deixamos aflorar nossas crenças e ideologias, perdendo o foco sobre as verdadeiras questões que devem ser enfrentadas. Apesar disso, neste texto me proponho a analisar o objeto “América Latina” com um enfoque “de dentro” e “para dentro”, ou seja, os nossos problemas, como estes nos afetam e a nossa culpa pelos mesmos. Acredito que a influência de “outros” em nossas políticas seja também considerável, mas a forma de participação da sociedade civil regional e dos próprios Estados representam os mais sérios entraves para o nosso messiânico progresso.
O último século foi palco de diversas transformações no continente americano. Vivemos períodos de conturbação política, de estabilidade ditatorial e, raras vezes, de continuidade democrática, mas, o principal, encontramos, como resultado de todo este processo, um aprofundamento da dependência da iniciativa estatal. Em análise comparada com os EUA, pode-se perceber que não tivemos nos barões do café brasileiros, nos estancieros argentinos ou nos latifundiários mexicanos, uma iniciativa privada independente das políticas econômicas dos governos vigentes. Enquanto Rockfeller gerava a Standart Oil, Thomas Edison impulsionava a General Electric, tudo o que tínhamos eram “coronéis” políticos e econômicos que pouco investiram em uma infra-estrutura perene. Acredito que esta seja a principal diferença que permitiu aos EUA um rápido desenvolvimento e mergulhou o resto do continente na sina da pobreza[1].
A análise do desenvolvimento histórico desta questão se faz importante por dar luz a diversos acontecimentos atuais. Vemos um processo de industrialização insípido graças a estas amarras ao investimento externo e interno sem controle governamental. Países da Ásia e do Leste Europeu já perceberam o que economistas do mundo inteiro enfatizam a décadas: o nacionalismo econômico, priorizando o mercado interno, causa distorções nas leis de mercado, prejudicando os consumidores e não incentivando os produtores. Esta política de industrialização foi largamente implantada na região, resultando exatamente no que imaginavam os economistas liberais, mercado interno sub-abastecido, inflação, e indústrias pouco competitivas.
Outro fenômeno sui generis, também fruto deste ideal nacionalista e da força do Estado, é o Populismo. Reforçando uma clivagem interna e externa, governos personalistas buscaram alternativas para o desenvolvimento da região, mas, invariavelmente, caíram na retórica vazia, acusando “agentes externos” e “as elites” pela famigerada situação de toda a América Latina. Políticas públicas de cunho assistencialistas, ainda hoje existentes, remetem a estes tempos. O Estado se tornou o centro de toda a economia[2], permitindo a incidência do aparelhamento das empresas estatais por partidos políticos, larga escala de corrupção e, principalmente, a falta de dinamismo nos investimentos.
Atualmente, vivemos a herança deste fenômeno, o “Leviatã” se transformou em “elefante branco”, a pobreza se tornou crônica, cíclica. O problema parece ser mais grave se tivermos em mente as opiniões de Jorge Castañeda, ex Ministro das Relações Exteriores do México. Para ele, temos um retorno destas práticas nacionalistas, com figuras carismáticas e discursos desenvolvimentistas. O ex-ministro traça um eixo neo-populista altamente prejudicial para a região. Sob o comando de Hugo Chávez, diversos movimentos similares estão tomando força: o MAS (Movimento ao Socialismo) elegendo Evo Morales na Bolívia e a Alianza País liderada por Rafael Corrêa no Equador são bons exemplos deste novo rumo. Baseando as políticas públicas na alta temporária do preço das commodities, estes governos reiteram os discursos assistencialistas, aumentando os gastos públicos em programas que não trazem um desenvolvimento econômico, ou, sequer, um aprimoramento da infra-estrutura interna. Outra importante característica deste movimento é a crítica exacerbada à atuação americana no plano internacional. O anti-americanismo de Hugo Chávez pode ser proveitoso para colocá-lo na mídia, mas certamente prejudica a imagem da Venezuela e sua inserção nas relações regionais, diminuindo assim o fluxo de investimento privado para o país.
Acredito, baseado nos preceitos apontados por Castañeda, que os principais problemas da América Latina estão relacionados a uma tradição de dependência de um Estado “bem-feitor” e de políticas paternalistas que, de tempo em tempos, acalmam os movimentos sociais através de gastos públicos irresponsáveis. O pleno desenvolvimento da região acaba sempre sujeito a uma estabilidade democrática, o que, excetuando-se em alguns poucos países, entre eles o Brasil, parece estar longe de tornar-se uma realidade. Governos antidemocráticos e práticas ditas populistas, como demonstra a história, simplesmente não combinam com crescimento sustentável, progresso econômico e melhorias sociais. Enquanto líderes aos moldes de Hugo Chávez “derem as cartas” na política regional, a América Latina continuará inserida no círculo da pobreza e viverá a sina do subdesenvolvimento.

[1] Corroborando esta lógica há o célebre discurso do presidente americano John F. Kennedy – “...não se pergunte o que o seu país pode fazer por você e sim o que você pode fazer pelo seu país.”
[2] No México, por exemplo, mesmo após as reformas liberalizantes, o Estado é responsável por cerca de 40% do PIB.