segunda-feira, 11 de maio de 2009

Sobre idéias por trás de muros

Caímos, com alguma frequência, na tentação de conferir às nossas idéias um estatuto de insuspeita liberdade. Com efeito, se nossas roupas são fabricadas em escala industrial, tendemos a reconhecer em nossos pensamentos algo que apenas a nossa vontade se subordina. Tal procedimento, quase sempre espontâneo, no entanto, já foi alvo de ampla e qualificada crítica no âmbito da filosofia, especialmente através das múltiplas formas assumidas pela polêmica entre idealismo e materialismo, nas quais a posição deste se define justamente pela tentativa de lastrear na realidade social (e material) a consciência a que aquele insiste em atribuir uma autonomia absoluta.

Este longo histórico de debates – que pode ser facilmente acessado em qualquer biblioteca razoavelmente provida – pode, então, ser tomado como um ponto de partida, o qual me permite iniciar minha argumentação de um outro ponto (referenciado – que fique claro – no lado materialista na pendenga). Se os condicionantes sócio-históricos são, então, tomados como pressupostos, minha intenção é justamente salientar que não são os únicos a amarrar o fluxo de nossas idéias, apontando determinações de outra ordem. Em especial, me interessa examinar um aspecto essencial de toda e qualquer atividade e/ou procedimento intelectual, a recepção de idéias, o que, evidentemente, inclui o modo como são processadas, avaliadas e reelaboradas por aqueles que as recebem.

A importância dessa dimensão dialógica do pensamento salta-nos aos olhos na medida em que nos voltamos para o dado mais elementar da experiência humana, isto é, seu caráter social. O homem não vive sozinho e, portanto, não pode ser considerado – em nenhuma hipótese realista, o que, portanto, descarta, de saída, todo o rosário de ficções liberais – imune à influência de seus congêneres. Se o homem não nasce sozinho, não aprende sozinho a falar, não produz sozinho, não há porque imaginarmos que seja capaz de pensar sozinho. Esse pensar coletivo pode, no entanto, manifestar-se de múltiplas formas, desde uma discussão direta que gere (ou não) uma síntese a partir de posições opostas, até a apropriação do conhecimento produzido por outras gerações de homens (através, por exemplo, dos livros, que nos permitem pensar ao lado de gregos mortos antes mesmo do nascimento de Cristo).

Avançando nessa direção, o pensar com alguém – esteja este alguém vivo ou morto, próximo ou distante – indissociável, como demonstrei, do próprio ato de pensar, pressupõe uma troca constante: questões são ininterruptamente colocadas de parte a parte, para que sejam recebidas (processadas, avaliadas e reelaboradas) pelos respectivos interlocutores.

O que denomino processamento deve ser entendido como o ato de decodificar a mensagem recebida, isto é, o esforço por compreender o que o outro diz. Já a avaliação, refere-se ao posicionamento ético (um juízo de valor) do receptor acerca do conteúdo dessa mensagem, ou em outros termos, sua concordância ou discordância em torno dele. Por fim, a reelaboração seria a capacidade de trabalhar aquilo que foi recebido – havendo concordância, ou não – com o fim de agregar a ele elementos do pensamento do receptor, transformando o conteúdo da mensagem original.

Se examino com alguma atenção esses distintos momentos da recepção de idéias, é porque considero que nossa sociedade – tal como hoje se apresenta – confere estatutos distintos a cada um deles, algo que é preciso deixar claro. Sem cair na armadilha que seria o questionamento do caráter capitalista do mundo Ocidental (para ficarmos apenas nele), o que me interessa é salientar o fato de que a produção e difusão de informações e idéias possui, atualmente, uma magnitude sem par na história humana. Se com a revolução informática – e, especialmente, com a difusão da internet – e o avanço tecnológico/barateamento de diversos equipamentos (câmeras, por exemplo) nossas possibilidades individuais de difundir nossos pensamentos se ampliaram bastante (ao menos, para aqueles que possuem um razoável poder de consumo), ainda existe uma imensa assimetria nessa capacidade de transmissão de idéias.

Nesse sentido, me parece impossível deixar de reconhecer o poderio concentrado – dentre outros – nas empresas de comunicação de massa. Esses veículos (rádios, jornais canais de televisão, entre outros) desempenham – para ficarmos em apenas um aspecto de sua inserção nessas sociedades – um importante papel na forma(ta)ção das consciências dos indivíduos e grupos sociais, o qual é fruto da conjunção de sua capacidade de difusão (imensamente aumentada com os avanços tecnológicos mencionados no parágrafo anterior) com as opções ideológicas daqueles que os conduzem. Muitos são os autores que já salientaram – com maior ou menor grau de acerto – aquela que talvez seja a principal consequência desse verdadeiro bombardeio de informações e idéias de que somos alvo: a perda de nossa capacidade de reelaborá-las.

Nossa recepção crítica fica, portanto, cada vez mais comprometida, na medida em que processamos um volume de idéias que cresce exponencialmente a cada dia e somos confrontados com a necessidade de realizar avaliações cada vez mais apressadas e destituídas de real significado, de que a escolha de nossos preferidos nos paredões do Big Brother é apenas um exemplo emblemático. O reverso dessa moeda talvez seja ainda mais dramático: na esteira dessas decisões triviais, somos afastados daquelas decisões que podem de fato representar alguma importância em termos mais amplos e tendemos a reproduzir o padrão de nossas decisões cotidianas quando finalmente nos aproximamos dessas questões maiores.

Tal aligeiramento do processo de recepção encontra alguma de suas mais nefastas consequências – como não poderia deixar de ser – no âmbito daquela dimensão da vida social que costumamos designar como política. Somos, cada vez mais, prisioneiros daquilo que denomino de “questões viciadas”, isto é, questões que nos são impostas para que processemos e avaliemos, dando nossa concordância, ou discordância, sem que nos seja requerido que examinemos com maior profundidade seus significados. No entanto, sabemos bem que não é necessário ser um especialista em análise discursiva para saber que as questões colocadas – bem como o modo como o são – não são neutras; a mais trivial experiência cotidiana o comprova. Toda e qualquer questão traz consigo um arco de respostas logicamente aceitáveis: se alguém me pergunta se eu tenho fome, certamente espero algo próximo de sim, ou não.

Nosso desafio é, portanto, examinar mais detidamente cada questão que nos é colocada, arrogando-nos o direito de negar os seus termos, subvertendo esse leque de possibilidades que ela nos coloca. Em questões complexas, que envolvem o destino de uma sociedade, não podemos tomar lados com a mesma facilidade com que o fazemos num estádio de futebol. Assim, a opção eleitoral entre PT e PSDB deve ser respondida com a afirmação de que existe política para além do voto; debates acerca das formas de induzir o crescimento ao PIB devem ser pontificados com a observação de que este indicador não dá conta dos danos ambientais e da exploração do trabalho humano que o sustentam, e assim por diante.

Antes de rumar para a conclusão desse texto, gostaria de examinar com um pouco mais de atenção uma questão que, colocada pelo poder público municipal carioca, vem encontrando grande repercussão nos meios de comunicação: a construção de muros cercando algumas favelas do Rio de Janeiro, sob a justificativa de impedir que sua expansão afete o meio ambiente, especialmente através do desmatamento da vegetação dos morros em que as favelas se localizam. Mais do que um simples posicionamento favorável ou contrário à construção de tais muros, importa percebermos de que maneira o arco de respostas circunscritas pela questão nos é imposto, desviando nosso pensamento de outros elementos possivelmente mais importantes. De saída, cabe refletirmos sobre a justificativa da proposta: a preservação ambiental, uma bandeira historicamente levantada pelos movimentos sociais e políticos associados às classes subalternas. Ora, da relação entre a proposta e sua justificativa pode-se, facilmente, inferir a conexão latente que se formula entre as moradias dos setores mais pobres da sociedade carioca e os danos ao meio ambiente. Dessa construção resulta a percepção de que seriam essas as pessoas diretamente responsáveis pelo iminente caos ambiental do qual o planeta se aproxima, o que não passa de uma pura falácia ideológica. Não há, em hipótese alguma, como comparar o desmatamento levado a cabo pela população das favelas que se pretende murar (menos de 2% da vegetação local dos morros nos últimos dez anos), com aquele proveniente da ação do agronegócio com seus intermináveis campos monocultores, ou com aquele resultante dos despejos de resíduos tóxicos pelas grandes indústrias. O único padrão de comparação que cabe aqui – e o qual raramente é feito – é em relação às construções de luxo (condomínios, mansões, etc) que grassam em áreas como a Barra da Tijuca, sem que seus responsáveis sejam importunados.

Há, ainda, uma outra questão que permanece à sombra do “debate” acerca dos muros: qual a opção consistente oferecida pelo poder público às pessoas que ocupam as favelas? Ora, não imaginemos que essas pessoas causem danos ambientais apenas pelo simples prazer de destruir mais rapidamente uma sociedade que não se ocupa delas a não ser através de seus aparatos repressores. Dada a ausência de moradias populares nas áreas mais nobres, bem como no centro da cidade, onde se concentram a maior parte dos empregos, e a precariedade da infra-estrutura de transportes da cidade (o que dificulta seu deslocamento, contribuindo em muito para a baixa qualidade de vida daqueles que optam por residir nas áreas mais periféricas), poucas são as alternativas que não as favelas. Portanto, debater a construção desses muros, no atual quadro, nada mais é do que elidir o debate acerca das políticas de habitação e transporte, entre outras, dessa cidade, causas verdadeiras da concentração dessas famílias pobres nas favelas e, em consequência, de sua contribuição ao desmatamento.

Por fim, cabe ressaltar que o condicionamento de nossas idéias e reflexões por elementos externos a elas ocorrerá sempre, afinal, o homem, como já afirmei, não pode ser imune às influências de seu meio físico, e nem dos demais homens. Entretanto, numa sociedade, como a nossa, em que a disparidade dos meios de se exercer essa influência é tão gritante, nossa capacidade crítica deve ser constantemente mobilizada a fim de que escapemos das questões viciadas. E mais, nesse contexto de desigualdade, a mera percepção e a saída individual dessas armadilhas que nos são cotidianamente impostas não bastam. Faz se necessário estabelecer articulações entre, de um lado, essas questões e as formas como são postas, e de outro, os interesses concretos a que se ligam. Defesas, em abstrato, da construção dos muros, desde que associada à fiscalização também dos danos ambientais causados pelas classes dominantes são, na prática, apenas defesas dos muros. Nós conhecemos as diferenças embutidas na mobilização do poder público para essas duas práticas. Uma coisa continuará ocorrendo sem a outra, e a culpa continuará recaindo sobre os mesmos ombros.
Marco M. Pestana