sexta-feira, 14 de março de 2008

Solidão hospitalizada

Estudando em um hospital universitário, público, acaba- se vendo e ouvindo muitas histórias, tristes e alegres. Algumas sempre chamam a atenção, seja porque simplesmente inusitadas ou deprimentes ou engraçadas. Entretanto, as que realmente mexem com cada um são as que trazem à tona nossos próprios medos, lembram- nos de nossas experiências ou simplesmente, por motivos muitas vezes desconhecidos, fazem com que nos imaginemos do outro lado, doentes e sofrendo, pois, por mais que não queiramos ser, somos iguaizinhos aos pacientes.
Especialmente no HU, onde estudo, há muitos doentes muito graves, terminais, sendo a morte um fato constante no cotidiano. A vida passa a ser uma questão de sobrevida, ou seja, de adiamento da morte. O cuidado é sempre máximo (ou devia ser) para que o prolongamento da vida não seja um prolongamento do sofrimento, do desgaste. Muitos acham que objetivo da medicina deve ser salvar vidas, prolongá-la ao máximo, defendê-la. Outros, acham que não, que o verdadeiro objetivo é aliviar o sofrimento, promover o bem-estar, proporcionar vida sim, mas com um mínimo de qualidade, para que cada um a desfrute à sua maneira. Talvez realmente haja vida que não valha a pena ser vivida, talvez por nem ser vida direito.
Voltando à questão de sobrevida, gostaria de esmiuçá-la um pouco mais. Quando nos defrontamos com a mortalidade do ser humano, com a nossa própria, percebemos que a definição de cura e principalmente a sensação de “perigo eliminado”, de trabalho terminado é muito enganosa. O mundo é muito dinâmico, a saúde não é diferente. Cem por cento dos pacientes morrem, no final das contas. O que se faz é prolongar. Acaba- se com o câncer, morre- se do coração. Faz- se pontes de safena, salva- se o coração, morre -se de infecção. Salva- se o cérebro, na semana seguinte morre- se com um tiro, com um cofre na cabeça ou o que for. Num episódio de câncer de uma pessoa conhecida, próxima, lembrei-me de uma frase de Drauzio Varella, que dizia mais ou menos o seguinte: já vi muitos pacientes cujo prognóstico sombrio foi dado pelos médicos de pouco tempo de vida, alguns anos no máximo, que acabaram por enterrar seus cônjuges e até mesmo seus médicos.
Outra questão que me deixou muito reflexivo foi a questão do abandono, da solidão, o que aparece muito no hospital. As pessoas ficam mais velhas, perdem os pais, entes próximos, ficam doentes e acabam largados em leitos de hospital, abandonados. Não sei se é uma questão só minha, mas o elemento mais deprimente de internados no hospital é quando eles não têm nenhum visitante, acompanhante, ninguém aparece para vê-los. A tristeza de ver uma pessoa muito mal ou mesmo no fim da vida, só, combina-se à tristeza da própria pessoa. A diferença é nítida entre pacientes que têm acompanhantes e os que não têm. Não sei, será que fica uma impressão de que já passou a sua vida inteira e não “marcou” ninguém o suficiente para que gostasse dele e viesse vê- lo nesse momento, fazer um pouquinho de companhia? É claro que há exceções, casos em que, realmente, praticamente TODOS os conhecidos já faleceram.
Recentemente, acompanhei por mais de um mês um paciente internado, parkinsoniano que havia fraturado o fêmur, que já estava internado há mais de um mês quando comecei a acompanhá-lo. Teve duas infecções durante a internação, estava desnutrido e já há algum tempo não conseguia mais deambular e mal conseguia mexer as pernas. Antes de ser internado, já quase não saía de casa e estava com muita dificuldade de realizar atividades cotidianas como cozinhar, limpar a casa e até mesmo comer (a rigidez e o tremor atrapalhavam-no muito). Além de examiná-lo, conversava com ele e descobri que era um fanático por futebol, como eu, que era vascaíno, mas que achava que o Fluminense tinha um ótimo time. Simpatizei muito com ele. Entretanto, já começava a apresentar déficits cognitivos, da memória e às vezes alucinava. Ele tinha família, uma filha, três irmãs, sobrinha. Sua esposa tinha falecido há pouco mais de 5 anos. Vi somente uma vez um membro da sua família, sua sobrinha que veio saber de seu tio, que já estava de alta. Conversei com ela, junto com os médicos residentes da enfermaria de Neurologia, todos já meio chateados com a família desse paciente, que não o levava embora e o fazia ocupar o leito que teria muito mais serventia para outro paciente. Outra coisa, inclusive dita à sobrinha, foi que se o paciente ficasse internado mais tempo, ele iria infectar novamente e iria falecer. Seria só uma questão de tempo. Infecção hospitalar é algo muito sério. Afinal de contas também, hospital não é asilo. Todo o descontentamento com a família foi se desfazendo e sobreveio um sentimento de culpa pela incompreensão da situação de muitas famílias de brasileiros. A sobrinha depois de nos explicar sua situação, chorando, foi conversar com o serviço social. Explicou que não tinha condições de cuidar dele, uma vez que morava com a mãe e ambas trabalhavam o dia inteiro, ganhando cerca de 2 salários mínimos, sendo que ela tinha uma filha pequena para cuidar. Queriam auxílio, declarações para dar entrada de pensão no INSS, para com ela pagar alguém para cuidar dele. Explicaram que esse processo do INSS demora bastante, que não seria bom que ele ficasse internado tanto tempo (não seria bom no sentido de que provavelmente ele morreria). Isso foi há 20 dias, desde então, não houve grandes mudanças na situação. Quanto às outras duas irmãs, uma era aleijada e a outra também tinha Parkinson, sendo cuidada pelo marido. Quanto à filha, ninguém sabia. Nunca teve um bom relacionamento com o pai, parece. Como eu queria que na verdade a família fosse um bando de canalhas megeros... Poderia usar essa situação aqui pra falar da necessidade de boas casas de assistência e asilos estatais, públicos e gratuitos, mas não quero me prolongar muito. A questão é, ele pode não morrer em breve. Todavia, o mais triste dessa história toda é que, semestre passado, vi um caso de abandono semelhante, um andar abaixo. Um paciente internado para fazer radio/quimioterapia por um câncer de língua que teve um AVC durante a internação. Ficou cerca de 4 meses de alta, esperando alguém da família ou conhecido vir buscá-lo. Ninguém foi, morreu de infecção.
Termino o texto com uma cena bonita, mostrando que ainda há esperança para a humanidade. Quando esse paciente com Parkinson se recusava a comer, o paciente ao lado convenceu-o e lhe deu café da manhã. Completamente desconhecidos eram até então. Não é só. Esse paciente fraterno teve alta, entrou outro. Entrei na enfermaria outro dia e vi esse novo paciente oferecendo-se para ajudar com a alimentação do parkinsoniano. No mesmo dia, um quarto paciente, que estivera internado na mesma enfermaria, voltara para visitá-lo. Isso é que é solidariedade, mesmo quando acha- se que não há muito a oferecer!
Alexandre

6 comentários:

Unknown disse...

Praticamente um Dr. Dráuzio Varella... Mas, falando sério, esse debate da sobrevida deveria ser levado mais a sério no Brasil, inclusive no aspecto legislativo, que não pode ser tão poribitivo com relação a questões como eutanásia.

Gabriela Roméro disse...

Quem dera alguém cogitasse debater eutanásia a sério no Brasil. Já é difícil convencer que estudos com células tronco não são a mesma coisa que os estudos de Josef Mengele!

Daniel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Daniel disse...

O pior é ver que não abrem essas questões para a sociedade. Por que um jurista se acha capaz de decidir uma coisa dessas sem nem levar em conta o interesse comum?!
O que um indivíduo formado em direito sabe sobre células tronco pra ter um poder tamanho?
No mais, muito legal o seu texto Alexandre!

cotidiano.papagalli disse...

E isso não é um problema só nessa área biológica... Não sei se é só impressão minha, mas o judiciário tem mt poder no Brasil. Levemos em consideração que no sistema que há, ele é o poder menos democrático. Ele tem sempre a última palavra sobre tudo, e é constantemente solicitado a dar sua opinião. Parece que um juiz tem uma sabedoria suprema, acima da sociedade ou de conhecedores da causa...
Alexandre

Unknown disse...

Na página 25 do Globo de hoje tem uma matéria sobre eutanásia bastante interessante.